memorias jei
Crônicas

Como a Memória, a Água e o Jeito

Em algum momento da vida, uma frase cria peso, dimensão e se expande até, por fim, tomar forma e criar raízes, pequenos filetes que, por sua vez, fincam-se na carne e tendem a sair com muita dificuldade.

Assim são as memórias, amarradas em algum espaço imaginário da mente, esperando momentos inoportunos ou até convenientes para se manifestarem como uma explosão de cores, sons e cheiros. Memórias são nada mais que lembranças de sensações perdidas em espaço e tempo.

Por isso, as datas são quase insignificantes se não estiverem registradas, mas as palavras, seus mínimos significados e tudo aquilo que se sucede, estão vivos e presentes, prontos para seguirem como pequenos soldados em busca de dar razão a determinado momento.

Foi assim que se apresentaram: frases, canções, histórias, músicas e tudo aquilo que veio com meus avôs, bisavôs e todos antes deles. As memórias coletivas da família, do boca a boca, do avô que fugiu da Itália e trouxe os filhos, mas logo desapareceu em plena ditadura, e pouco se falava se o pobre homem fora alvo do governo. O conto, por mais clichê que fosse, era que havia ido comprar cigarros. Ou teria sido executado por outra história envolvendo máfia italiana? Eram incógnitas que se misturaram a enredos de famílias japonesas (me ver e saber que tenho parentes japoneses é sempre um choque!) que deixaram de fazer parte da corte real, por terem um número de filhos acima do permitido e decidiram se aventurar para conhecer um novo mundo. Quem conta um conto, aumenta um ponto. Será?

Como a memória se faz, o contato derradeiro com a literatura pode ter se dado com gibis da Turma da Mônica, na insistência de apenas ler o Cebolinha e Cascão, quase ignorando a protagonista da história. Ou da professora chata (falo isso na voz do meu sobrinho, outra memória) que nos obrigou a ler um livro da biblioteca e fazer um trabalho em dupla. Meu colega escolheu o mesmo livro, então, um azul, bonito, onde uma árvore em formato de coração estava desenhada na capa. De cara, nos prendemos naquele enredo que, acima de tudo, falava de amizade e hoje mataria para encontrar novamente esse livro. Sua memória e suas palavras perduraram em mim, mas seu nome se perdeu como lágrimas na chuva…

Como todas essas leituras forçadas me impediam de amar os livros, mas um ou outro chamava atenção, mas nenhum me marcou tanto, me pegou de uma forma no imaginativo como aquele livro comprado por acaso.

Era começo ou final de ano, a memória me falta em datas, quando meu melhor amigo de outra escola, em outro tempo, foi à livraria comigo e comprou um livro, me questionando se eu havia lido determinado livro. Na minha negação, ele me indicou um livro. Era bonita a capa (e ainda é!) e, infelizmente, tinha pouco dinheiro para comprá-lo. Mas ele me ajudou com cerca de 2 reais, e levei, comprado na livraria Saraiva, que hoje não existe mais. Mas a esquina do corredor, o local de onde o retirei, está aqui na memória. Por sua vez, o livro também, na estante, guardado, com marcas de uso e muito carinho, ao lado de seus outros seis irmãos mais novos: “Harry Potter e a Pedra Filosofal” e todos que vieram depois.

Juro que chorei ao escrever isso. Sou uma das crianças que gostou de ler, ou apenas engrenou para não ser injusto consigo mesmo, com aquela autora que hoje amo imensamente. Não sei se me sinto velho demais ou novo ao dizer isso, mas meu gosto por ler antes de sair o filme surgiu nessa época. Minha mãe me levava para assistir o primeiro filme e comprava já o segundo volume. Pobre do atendente da mesma Saraiva que veio questionar se era porque já tinha visto o filme, que ainda estava em exibição. Prontamente, disse que não, pois já tinha o primeiro, e a surpresa dele foi tanta então quando me virei e sai andando, ignorando o absurdo. Que crime era, para mim, deixar de ler um livro por assistir ao filme! Desde esse dia, sem saber, lia os livros antes dos filmes serem lançados, e em muitos casos, os relia também.

Da mesma maneira que a literatura jovem me pegava, outra literatura tomou seu poder sobre mim. Acabara de assistir a outro filme próximo a essa época e, prontamente, quis ler. O livro me atingiu de uma forma que quebrou minhas pernas para o que tinha ali. Eram palavras difíceis, como chamava, um jeito diferente de contar, um modo de me encantar. Este não me capturou como o anterior, pois eu era imaturo demais na época, ou pelo preço exorbitante, de 50 reais, possa ser dos outros volumes. Mas, assim como um me marcou para gostar de ler, o outro me marcou para gostar de escrever. Este livro é “O Senhor dos Anéis e a Sociedade do Anel”, assim como meus “Harry Potter”, guardados com todo o carinho que me é possível.

Tanto a leitura quanto a escrita foram como água; de algum modo, conseguiram se infiltrar em mim, tomar seu caminho e me viciar em seu gosto. Aquilo foi um turbilhão. Gostava de ler e querer ser autor. Logo, as histórias começaram a ser escritas em cadernos antigos de escola ou em folhas A4 que sempre se misturavam.

Na época ainda, escrevi muitas fanfics baseadas em games como Resident Evil. Minha primeira trilogia, mesmo que incompleta, pode ser que você que está lendo tenha até mesmo seguido um dos detonados escritos por mim (naquele tempo eu estava em um fórum e fazia parte da equipe). De certo modo, isso me libertou a expandir aquilo que havia dentro de mim. Para a minha geração, foi importante ter onde publicar de forma gratuita, onde houvesse comentários de outras pessoas que não nos conheciam e elogiariam ou criticariam nossos trabalhos. A escrita sempre tomou formas em minha vida, posso então afirmar que fui levado pela sua corrente que hoje ainda e agora decidi correr além de mim.

Não demorou para que eu soubesse de uma antologia que, mesmo paga, me ajudaria a realizar o sonho de publicar. Então, me apressei em escrever aquele conto, que hoje ainda tenho guardado na estante, sobre o tema proposto: “Fim do mundo”. Viajei na ideia e criei algo que fosse curto, breve, mas com começo, meio e fim. Foi assim que surgiu “A Tempestade”, sobre uma invasão alienígena e um rapaz que morria de febre na cama, apenas assistindo na TV. Mandei, morrendo de medo, e quando passei, que choque! Não esperava que logo na primeira tentativa conseguiria poder publicar.

Porém, a vida sempre encontra um jeito de nos surpreender. A memória é falha da época; minha mãe me apoiou na ideia até onde me lembro, mas ela não estava viva quando publiquei. E, se me lembro bem, meu pai morreu logo no ano seguinte à publicação. Foi então que descobri que meu medo de publicar era tolo, porque alguém disse que tudo na vida a gente pode dar um jeito, só a morte que não. Por um lado, ganhava um novo mundo; por outro, perdera tudo.

A vida, como a água, sempre encontra seu jeito de seguir o destino, por mais finito que o mesmo seja. Não parei de escrever contos e, de mais cinco antologias, paguei para publicar. Mas as correntes que antes me alimentavam começaram a secar. Perdi a esperança e os sonhos, tendo que arcar com responsabilidades que estavam acima de mim. Muitos são aqueles que querem sair da casa dos pais. Fui forçado pela vida a ir mais rápido do que esperava, e esse período consumiu tudo aquilo que antes se seguia. Fiquei doente, depressivo, neurótico, cada vez mais antissocial e, acima de tudo, irresponsável. Parei de escrever, me alocando em um emprego péssimo que consumia mais de 10 horas do meu dia, que não me deixava respirar por quase três anos seguidos, até que consegui sair do torpor que foi esse luto e dizer que aquilo não era bom para mim, que estava me consumindo. Foi uma época em que eu perdia o gosto pela leitura, pela escrita e pela própria vida.

Como dito, tudo na vida tem um jeito. Logo, consegui abrir a boca e dizer ao meu chefe que eu não era feliz lá, e essa atitude me permitiu sair, ser livre e ir para outro lugar. Os escritos continuavam tímidos e, sempre que começava, parecia que algo tentava me barrar. Era uma mudança de emprego, uma mudança de relacionamento, uma mudança de estilo de vida; era sempre uma desculpa. Encontrava muitas desculpas e observava a vida passar, o momento passar. O que eu não conseguia ver era que eu estava em depressão, e foi só quando tive as primeiras crises de ansiedade que comecei a abrir meus olhos para o que acontecia na minha vida, na minha mente e em tudo ao meu redor.

Adormeci pelos caminhos que a vida me levou, lutando com o luto, sem rumo e sem direção. Se escrevo é porque preciso exorcizar meus demônios, se então escrevo é para me encontrar naquelas palavras nunca ditas. Se escrevo, então é para mim, para conseguir escutar os ecos dos meus devaneios.

Desperto para o mundo, desperto para mim, desperto para a vida. Não sou mais o menino que era, não sou mais aquela degradação. Hoje me encontrei, te encontrei, feliz estou por não mais estar sozinho, livro sou, tenho tanto a contar e alguém para amar.

Te vejo por aqui, te verei por algum lugar, pode ser hoje, amanhã ou em um domingo qualquer. Nem sempre a vida precisa fazer sentido. Vendo então os vídeos do Tiago, percebi ainda mais meus erros, tropeços, meus egos, minhas desculpas. Precisei, então, não mais criar mentiras e fui atrás mais uma vez dos meus sonhos, daquilo que foi tão presente e continua aqui estagnado, esperando seguir seu rumo. Seja este o rumo que queira ser.

Nasci sob o signo de fogo, mas está na água meu equilíbrio. Meu coração queima com a chama da vontade, e a alma navega pela trama da criatividade.

Raphael T. A. Santos é apaixonado por SciFY e literatura, tendo estado presente nas primeiras edições das antologias do Grupo Editorial Andross, com 6 contos, possuindo também uma publicação na antologia Rupturas, produzido no âmbito do Curso de Introdução à Escrita Criativa, coordenado pelo autor Tiago Novaes e, de forma independente, o conto de terror cósmico, Umidade, e atualmente escreve suas crônicas, tópicos de escrita criativa, carreira literária e marketing no site Escrita Selvagem. Publicou o seu primeiro livro de romance, Mãe de Sal, em 2021. Frágil como Origami é o seu segundo livro.

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