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Crônicas

Não era apenas um café

Em casa, mesmo que fosse a casa do meu avô, a hora do almoço costumava ser ritualística, quase religiosa. A empregada e nossa avó passavam horas na cozinha, em meio a cheiros e sabores, gritando e atravessando de um lado a outro com as imensas bacias de frango temperado, salada ou macarrão gelado com presunto de lata. Os pratos sempre variavam, mas não era como se nossa avó fosse uma boa cozinheira. Na verdade, ela cozinhava bem o que era prático; coisas muito mirabolantes para ela sempre custavam caro.

Nosso avô estava em movimento; não saberia dizer ao certo, mas podia até estar parado assistindo TV, porém sua voz reverberava pelas paredes como se sua presença fosse sentida em cada canto. Era um homem forte, como minha mãe afirmava orgulhosamente. Sempre que tinha algum problema, era o primeiro a levantar e tomar atitude. Lembro de vê-lo carregando sacos de areia, atravessar a casa com móveis pesados e pegando a Kombi para fazer a maior barulheira para comprar algo que a empregada ou nossa avó poderiam ter esquecido.

Os dois ficavam quase em cantos distintos da imensa casa, um sobrado de dois andares, enquanto nós, os netos, parecíamos circular entre eles, andando com patins pelo salão de tacos, tentando desviar das tábuas que ameaçavam decolar, ou brincando no quintal procurando tatuzinhos no meio do mato e, em dias quentes, buscávamos a piscina da casa.

Como disse, o almoço era ritualístico e quando nossa avó gritava que a comida estava pronta, todos paravam e andavam para as mesas. Existiam duas delas, uma para os adultos e outra destinada às crianças, uma separação injusta, mas um claro modo de limitar os assuntos e de impedir que opinássemos, como toda criança intrometida o faz. Fato que era, em muitos dos casos, inútil, já que as mesas se separavam apenas por um pequeno parede com um grande vão aberto.

As refeições eram servidas e as conversas disparavam loucamente, entre fofocas, discussões e um cuidando dos aspectos da vida do outro. “Quando vai me dar um neto?”, “Você tem que ser mais responsável menina!”, “Na idade de vocês eu já trabalhava”. Às vezes os papos eram os mesmos e nunca pareciam ter uma conclusão ou o mínimo andamento; todo sábado ou domingo, nós estávamos parados no tempo.

Barrigas cheias, muito tempo depois vinha o café. Pelo menos era assim que eu percebia, como conclusão daquele ritual. Minha avó, sem a empregada que desaparecia antes do almoço, começava a esquentar a água e perguntava para todos quem gostaria de um cafezinho. Para as crianças não era proibido, mas os nossos sempre eram sugeridos com leite, assim amenizando a possível agitação que teríamos com doses grandes.

Meu avô era um bebedor assíduo de café e não importava a hora ou o momento, ele estaria tomando. Logo após alguns começaram a ir embora, ou voltarem a outros assuntos, deixavam a cozinha e seguiam toda a atenção para a sala.

Às vezes existia um estalo e do nada nosso avô surgia perto dos netos e falava. “Vamos comprar um docinho?”. Era essa a nossa chance de ter um tempo só nosso com ele, naquele dia em especial meus tios disseram que não era necessário, “Pai, estamos tentando fazer eles diminuírem com os doces”, lembro do rosto dele um pouco frustrado, mas continuei ali parada esperando que guiasse meu caminho. Meus pais apenas sorriram do outro lado da sala e fui guiada pelo meu avô para fora.

Perguntei aonde iríamos, mas por dentro já sabia a resposta, então respondeu desinteressado. O café do japonês. Era um nome engraçado e que não parecia combinar entre si, mas naquela idade eu realmente não me importava, então andei com meu avô uns poucos quarteirões até o lugar, pequeno, minúsculo e quase desaparecendo com o tempo. O café um dia fora apenas uma loja, chamada de o mercadinho do japonês, mas com os anos ele transformou a frente em um café simples e com uma decoração inusitada, mas se você ainda fosse para os fundos, encontraria a loja. Na entrada uma barreira de calçada solitária parecia impedir que algo entrasse no café, na época eu não sabia o nome e apenas chamava de dedo de concreto.

Nas paredes existiam prateleiras com brinquedos antigos, possivelmente dos filhos do japonês, que agora maiores, não precisavam mais deles e então estavam ali expostos como decorativo do café. Além deles a esposa comprava quadros franceses e os pendurava aleatoriamente, lembro de ler um com a palavra “Pax” e sempre me questionava o seu real significado.

Meu avô chegou cumprimentando o homem e logo pegou dois lugares para nós. Claramente tomaria outro café e por isso pedi apenas refrigerante de gengibre, um tempo depois meu avô apareceu trazendo uma barra de chocolate e virou para o japonês pedindo que colocasse na conta. Lembro da cor da embalagem, de um roxo bonito, destacando a marca em amarelo e o doce marrom logo abaixo.

O café e minha bebida chegaram um tempo depois, servidos em copos de vidros com total cuidado pelo dono. Meu avô me virou o chocolate e pediu que abrisse, enquanto adoçava seu café com bastante açúcar. Me peguei na tarefa, já esperando sentir o aroma daquele chocolate, outras crianças detestavam o sabor, mas eu amava aquela combinação de amêndoas com uva-passa, não era apenas um chocolate, era o nosso chocolate.

Comemos e conversamos. Às vezes me aconselhava, em muitos casos me dava broncas, mas acima de tudo, aquele momento era um modo dele me dizer que me amava. Lembro de passarmos um bom tempo juntos, que aconteceram muitas outras vezes, sempre naquele mesmo lugar. Não era como se ele me desse conselho, mas ele se mostrava presente.

Os anos passaram e voltei para aquele lugar, no caminho vi o antigo casarão ainda erguido, uma relíquia do seu tempo, agora com uma cor diferente e portões tingidos de branco. O caminho até o café era instintivo e sai andando até lá, como alguém que não tem dúvidas do caminho.

Ignorando as mudanças, apenas fui, ainda incerta, se o café existiria e cheguei ao lugar, ou achava que o tinha. Olhei ao redor, buscando qualquer sinal de que estava no lugar certo, mas nada ali parecia mais igual quando era criança. Então vi aquela única barreira de calçada, antiga e com a tinta gasta, em frente a uma loja de umbanda, dei um gritinho alto, pois estava logo na minha frente. Torci para que a dona da loja não tivesse reparado e dei uns passos para trás.

Que surpresa, o café não existia, mas de alguma forma podia me ver ali com meu avô naquele tempo. Uma imagem clara do passado, presa na minha memória como uma fotografia. Estava passando pelo bairro da minha juventude e almocei num lugar relativamente chique, mas estar naquele lugar me fez retornar a diversas memórias e o café era o que mais parecia me importunar. Pensava no chocolate que ainda existia, naquela embalagem roxa que comprava sem pensar duas vezes, precisava saber se o café também teria sobrevivido aos anos.

Aquilo me ativou tantas memórias que a primeira atitude foi comprar o chocolate, apenas fui seguindo até o café, na esperança de encontrá-lo. Viver aquela memória mais um pouquinho, porém tudo apenas estava na minha cabeça.

Não poderia estar mais desapontada, dei alguns passos e me despedi daquela memória, da cena fantasma que ainda estava grudada na minha mente. Meu avô sério e eu jovem com um olhar de quem matutava algo dito a pouco. Agora eu precisava encontrar um café e pelo menos sentir o gosto daquele líquido no bairro da minha juventude, seria o mínimo que poderia conseguir sem o lugar.

Era engraçado pensar que até hoje um café e um chocolate, não eram apenas um café. Era absolutamente tudo.

Raphael T. A. Santos é apaixonado por SciFY e literatura, tendo estado presente nas primeiras edições das antologias do Grupo Editorial Andross, com 6 contos, possuindo também uma publicação na antologia Rupturas, produzido no âmbito do Curso de Introdução à Escrita Criativa, coordenado pelo autor Tiago Novaes e, de forma independente, o conto de terror cósmico, Umidade, e atualmente escreve suas crônicas, tópicos de escrita criativa, carreira literária e marketing no site Escrita Selvagem. Publicou o seu primeiro livro de romance, Mãe de Sal, em 2021. Frágil como Origami é o seu segundo livro.

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