A Técnica da Narrativa em Abismo nas Obras de J.R.R. Tolkien
Este texto não se propõe a ser um estudo aprofundado das técnicas utilizadas por J.R.R. Tolkien, mas sim uma explanação dos conceitos básicos e uma visão geral dos métodos empregados em “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis”. Não buscamos uma abordagem acadêmica na análise literária.
Dentro das complexas técnicas e formas de escrita de Tolkien, há uma diversidade de narradores em suas obras. Ele faz uma distinção entre o Autor Interno (os personagens do mundo imaginário) e o Autor Externo (Tolkien na vida real).
No contexto interno, as histórias contadas em “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis” são registros baseados na memória dos personagens que viveram as aventuras. Bilbo, Frodo Bolseiro e outros hobbits registraram seus feitos em tomos conhecidos como o “Livro Vermelho do Marco Ocidental”.
Tolkien via as histórias da Terra-média como um passado mitológico do nosso próprio mundo, e ele mesmo se inseria na linha do tempo desse mundo secundário. Ele não é apenas o autor das histórias em nossa realidade (Autor Externo), mas também um personagem do seu mundo, um tradutor que encontrou os registros dos dias antigos e os transcreveu para o Inglês moderno.
Isso é evidenciado no frontispício de O Senhor dos Anéis: “O Senhor dos Anéis, traduzido do Livro Vermelho do Marco Ocidental por John Reuel Tolkien. Aqui está contada a história da Guerra do Anel e do Retorno do Rei conforme vista pelos hobbits”.
Assim, O Hobbit e O Senhor dos Anéis são relatos das aventuras sob a perspectiva dos hobbits que as vivenciaram. Em contraste, O Silmarillion apresenta histórias escritas a partir do ponto de vista dos elfos ou dos humanos de Númenor.
Tolkien desenvolveu a interessante teoria literária do Mundo Secundário e do Mundo Primário em seu ensaio “Sobre Contos de Fadas”. Para enfatizar essas ideias, o autor utilizou diversas técnicas em seus livros, destacando-se a Narrativa em Abismo e a técnica In media res.
A Narrativa em Abismo aplicada no Senhor dos Anéis
A Narrativa em Abismo, também conhecida como Narrativa Incorporada ou Narrativa em Camadas, é uma técnica literária em que uma personagem em um texto narrativo se torna a contadora de uma segunda história, que está enquadrada na primeira. Essa “história na história” pode ser utilizada em diversos tipos de narrativas, como romances, peças teatrais, programas de televisão, filmes, poemas, músicas e ensaios filosóficos.
Essa técnica pode ser associada à imagem de um espelho refletindo outro espelho em um efeito de espelhamento infinito. Um exemplo dessa abordagem pode ser encontrado no capítulo “O Conselho de Elrond”, em “O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel”. Nessa parte da história, Frodo Bolseiro participa de uma importante reunião com representantes dos povos livres da Terra-média, enquanto Gandalf narra seu encontro com Saruman e a descoberta de sua traição.
No livro, Tolkien apresenta três camadas narrativas na maior parte da obra, mas nesse capítulo em específico, são apresentadas quatro camadas. A primeira camada é representada por Tolkien como tradutor do Livro Vermelho do Westron para o inglês Moderno. A segunda camada é Frodo como autor do Livro Vermelho do Marco Ocidental, narrando suas memórias das aventuras. A terceira camada é o Conselho de Elrond narrado no livro como um evento histórico, onde Gandalf relata seu encontro com Saruman. E a quarta camada é a história do encontro entre Gandalf e Saruman e a descoberta da traição.
Outra representação dessa técnica pode ser visualizada por meio de círculos concêntricos. Na leitura inicial da obra, muitos leitores se baseiam apenas nas terceira e quarta camadas, os quais são a leitura comum e natural. Uma análise mais aprofundada exigiria uma atenção maior, geralmente adquirida em uma segunda ou terceira leitura crítica, ou quando o texto é utilizado como fonte de informação.
A técnica “In medias res”
A técnica literária chamada “In Medias Res” (do latim “no meio das coisas”) consiste em iniciar a narrativa no meio da história, em vez de no início, e os eventos anteriores são revelados pelos personagens ao longo da trama ou por meio de flashbacks. Essa técnica é frequentemente utilizada em grandes épicos clássicos, como “A Ilíada” e “A Odisseia” (de Homero), “A Eneida” (de Virgílio) e em obras modernas do mesmo estilo, como “Os Lusíadas” (de Camões) e “Paraíso Perdido” (de John Milton). Tolkien, como estudioso desses épicos, provavelmente se inspirou nessa técnica literária, e é possível identificar sua aplicação em seus livros ”O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis”, adaptada ao seu próprio estilo e apresentada em prosa.
Um exemplo modificado dessa técnica pode ser observado no início do capítulo XVIII de “O Hobbit”, intitulado “A Viagem de Volta”, em que Bilbo Bolseiro acorda em meio aos destroços da Batalha dos Cinco Exércitos sem saber o que havia acontecido, descobrindo os fatos da batalha posteriormente. Um cenário semelhante é apresentado no início do capítulo “Muitos Encontros” de “O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel”, no qual Frodo acorda em Valfenda e encontra-se com Gandalf, descobrindo o que aconteceu com ele e seus amigos posteriormente.
Tolkien utilizou essa técnica para proporcionar ao leitor a sensação de acompanhar a aventura juntamente com o personagem principal, ou seja, descobrir os eventos conforme eles se desenrolam durante a própria jornada. Vale ressaltar que a técnica “In Medias Res” não deve ser confundida com a existência de histórias anteriores narradas em “O Silmarillion”, nem com a técnica da Narrativa em Abismo, embora ambas possam coexistir na mesma narrativa.