
Contos de Nevèrÿon, de Samuel R. Delany: um mosaico fantástico sobre linguagem, poder e transformação
Publicado originalmente em 1979, Contos de Nevèrÿon (Tales of Nevèrÿon) é uma das obras mais instigantes de Samuel R. Delany — um romance em forma de mosaico que mistura elementos de espada e feitiçaria com discussões profundas sobre economia, linguagem, identidade e poder. Embora situado em um mundo fictício com selvas, dragões e imperatrizes infantis, este não é um livro de fantasia convencional. É deliberadamente subversivo e exige do leitor atenção, paciência e uma mente aberta.
Uma fantasia fora do eixo
Delany escreveu Contos de Nevèrÿon no auge do primeiro “boom” comercial da fantasia — aquele que começou após o sucesso editorial de O Senhor dos Anéis e foi intensificado por títulos como A Espada de Shannara, de Terry Brooks. Mas, enquanto o mercado se enchia de heróis arquetípicos e trilogias épicas, Delany tomava um caminho oposto: criava uma fantasia sem magia, sem destino manifesto e sem a metafísica que costuma caracterizar o gênero. O que resta é a “sensação” de fantasia — não nas estruturas clássicas, mas nos símbolos, nos contrastes culturais e nos espaços imaginados.
A ambientação evoca mais Howard e Leiber do que Tolkien. Há bárbaros e civilizados, mercados caóticos, coleiras de escravos e um mundo em transição — não da Idade das Trevas para uma era heróica, mas de uma economia de escambo para uma economia monetária. Embora essa premissa pareça datada à luz de estudos mais recentes como Dívida, de David Graeber, Delany a usa como lente para examinar como relações sociais, sexuais e políticas se reconfiguram em tempos de mudança estrutural.
Um romance de espelhos e reflexos
Contos de Nevèrÿon é composto por histórias autônomas — cada uma girando em torno de personagens diferentes, mas interligadas por temas e eventos comuns. Esses contos se repetem, se refletem e se distorcem como fragmentos de espelho. Delany brinca com estrutura narrativa e linguagem de forma que, ao final, o leitor tem a impressão de ter montado um quebra-cabeça maior do que cada peça sugeria isoladamente.
Esse estilo narrativo é o que levou críticos a cunharem o termo “romance mosaico”. E é justamente essa estrutura que torna a leitura tão envolvente: um universo construído a partir de múltiplas perspectivas, em que ideias são reapresentadas sob diferentes luzes, revelando camadas de significado que desafiam as expectativas do leitor.
Um dos principais temas — liberdade e escravidão — aparece tanto literal quanto simbolicamente. Mas Delany vai além do político e do histórico: ele investiga como o poder é construído, transmitido e representado através da linguagem, do gênero, do desejo e da própria narrativa.
Um jogo literário com implicações sérias
Apesar de lidar com temas densos — como opressão, desigualdade, identidade de gênero, exclusão e transformação social — Contos de Nevèrÿon é uma obra surpreendentemente lúdica. Delany introduz personagens aparentemente secundários apenas para depois retornar a eles em histórias inteiras. Um exemplo: as pescadoras das Ilhas Ulvayn são mencionadas de passagem, mas ganham destaque em um conto que explora alfabetização, gênero e invenção de sistemas simbólicos.
Delany também propõe que até mesmo a tecnologia — normalmente retratada como estagnada na fantasia — é dinâmica. Ideias e invenções surgem, tornam-se moda e desaparecem. Pequenos gestos, como a introdução de moedas, transformam práticas sociais como o casamento. Esse foco na mudança contínua torna o mundo de Nevèrÿon inquieto, fluido e mais próximo da realidade humana do que muitos mundos “mágicos” tradicionais.
Uma leitura que se amplia com o tempo
Ler Contos de Nevèrÿon é mergulhar em uma rede de significados que se desdobra lentamente. É um daqueles livros que “fala consigo mesmo”, em que tudo é mencionado mais de uma vez, sempre em contextos diferentes, e nada é gratuito. A recompensa vem com o tempo, à medida que o leitor percebe que compreende mais do que lhe foi explicitamente dito — uma experiência comparável, em termos estruturais, à leitura de O Nome do Vento, de Patrick Rothfuss.
Delany exige que o leitor participe ativamente da leitura, mas também convida à contemplação e ao prazer estético. É um livro para pensar, sentir e revisitar.
A série Nevèrÿon

Contos de Nevèrÿon é o primeiro de uma série de quatro livros que expandem ainda mais esse mundo e seus temas. O segundo volume, Neveryóna, é menos celebrado, mas continua explorando a mesma abordagem fragmentária. Já o terceiro, com o poderoso O Conto de Pragas e Carnavais, mergulha na crise da AIDS dos anos 1980, transformando fantasia em uma ferramenta crítica e política.
No entanto, mesmo que o leitor não avance para os volumes seguintes, este primeiro livro se sustenta por si só como uma obra complexa, bela e profundamente original.
Contos de Nevèrÿon não é uma fantasia tradicional — é uma meditação filosófica disfarçada de épico bárbaro. É uma obra ousada, que desafia as convenções do gênero enquanto constrói um universo rico e multifacetado. Para leitores dispostos a aceitar esse desafio, é uma leitura inesquecível.

