carta a um velho amigo
Crônicas

Carta a um velho amigo

Velhinho,

Era assim que você me chamava quando éramos amigos, em um tempo que me recordo tão bem. Sempre pensei em te escrever uma carta, contar o que penso e fazer perguntas que jamais tive coragem de fazer.

Lembro-me de um dia em que fui de carro até a casa da sua avó, onde você morava. Eu estava triste, desamparado e depressivo. Naquele momento, disse que não estava aguentando mais, sem precisar pronunciar aquela dolorosa palavra. Você não hesitou um segundo para me olhar e dizer o quanto eu era importante para você, que me queria em sua vida e que um dia eu seria o padrinho do seu casamento. Nunca me esqueci desse dia. Suas palavras me tiraram daquele lugar angustiante e me fizeram tentar não desistir.

Existem coisas que você não sabe e nem poderia imaginar. Aquele dia foi um dos muitos em que pensei em acabar com tudo. Minha vida foi difícil, para não dizer complicada. Uma sucessão de eventos me levou a lugares ainda mais sombrios. Eu havia acabado de perder minha mãe, e você estava lá, assim como sua mãe, para me apoiar. Semanas depois, minha tia pediu a casa em que eu morava, e começaram a pressionar para que meu pai e eu saíssemos. Nem sei se te contei, mas comecei a me distanciar de todos naquela época. Minha avó queria que eu fosse morar com ela e abandonasse meu pai. Insisti que não, não iria abandoná-lo. Depois disso, fomos morar numa casa menor, que era da família, e essa foi uma das poucas, se não a única, coisas boas que minha avó me fez.

Não lembro exatamente do tempo como algo mensurável. Em sessões de terapia, aprendi que minha falta de clareza sobre quando as coisas aconteceram foi uma forma de sobreviver a cada golpe que me deram. Parei de ver o tempo como algo a ser observado, e ele se tornou apenas um relógio incessante me gritando que eu estava perdendo um tempo da minha vida.

Um ano e um mês após a morte da minha mãe, meu pai também faleceu, e fiquei mais sozinho do que nunca. Como mencionei antes, essa sucessão de acontecimentos em 2010 fez com que eu me sentisse completamente abandonado. Depois que terminamos o ensino médio, sei que seguimos caminhos diferentes: você estudando para entrar na USP e eu conseguindo que meu avô, quando ainda vivo, financiasse meus estudos. Contudo, lembro de cada um dos aniversários para os quais te convidei e você desmarcou de última hora. Isso me machucou profundamente por tantos anos. Em um momento, você era meu melhor amigo, e depois parecia que você havia desaparecido da minha vida.

Claro, você não foi o único. Todos os outros também desapareceram, e por muito tempo fiquei buscando uma explicação. Nem sei se cheguei perto da verdadeira razão. Talvez não da sua parte, porque você sempre me apoiou. Jac foi a primeira pessoa a saber que eu era gay, e usamos o código “pinguins da Patagônia” para falar disso. Eu tinha medo de te contar e te perder, mas você fez o contrário, e sou muito grato por isso. No entanto, com relação às outras pessoas ao nosso redor, será que descobriram e se afastaram por causa disso? Acho que sempre carregarei essa dúvida. Sei que alguns se tornaram preconceituosos e estranhos, mas realmente não entendo o que fiz de tão errado para todos me abandonarem.

Você conhece o filme Conta Comigo (Stand by Me)? É engraçado como, na cena final, esse filme representa exatamente o que sinto em relação à perda dos meus amigos, à perda de você. No final, o narrador diz: “I never had any friends later on like the ones I had when I was twelve. Jesus, does anyone?”. Para mim, é o mesmo.

Durante a pandemia, me peguei ainda com esses pensamentos. No isolamento forçado, comecei a escrever. Queria escrever um livro, e quando vi, estava falando de mim, das minhas angústias, desabafando. O nome original do livro era Misantropia, pois era assim que eu me sentia. Demorei alguns anos para encontrar um nome mais adequado, e então surgiu Frágil Como Origami. Estou te contando isso porque, no final, a imagem do melhor amigo que coloquei no personagem foi totalmente inspirada em você. Embora eu tenha criado um personagem fictício, a essência do amigo que você foi está ali, cravada no livro. Quero que saiba disso, mas não se ofenda se, ao ler, achar que estou falando de você, pois o Zeca, o personagem, é alguém que não existe.

No fim, não espero nada. Não exijo nada. Apenas queria desabafar e tirar essas coisas de dentro de mim, independentemente de você se interessar ou de qual seja a sua resposta. Não me importo com isso, mas preciso falar, pois guardar coisas que não conseguimos expressar é mais doloroso do que falar. Espero que um dia você leia meu livro, e se não o fizer, tudo bem. Obrigado por inspirar minha imagem de um amigo excepcional.

Te desejo tudo de bom, e sigo agora mais leve.

Atenciosamente,
Um velho amigo.

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